Publicação: 2 de março de 2012Categorias: Entrevistas

 Confira entrevista com Raimundo Augusto de Oliveira, membro executivo da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e coordenador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares (Equip). Durante a entrevista, o militante aborda os principais objetivos das Organizações Não Governamentais (ONGs), bem como os problemas enfrentados por estas instituições no Brasil. O material foi produzido pelo IHU On-Line.

IHU On-Line – Em que contexto surge o debate de um marco regulatório para as ONGs?

Raimundo Augusto de Oliveira – O contexto de um marco regulatório para as ONGs parte da necessidade de as mesmas dialogarem com os gestores públicos, da necessidade de regulamentar uma relação política que já estava se dando e da legitimidade das ONGs acessarem recursos públicos, já que outros segmentos também já acessavam. Porém, no caso das ONGs, há a ausência de uma regulamentação das regras de repasse de recursos públicos, que são as mesmas para o repasse às outras estâncias de governos. Além disso, pelo fato de as organizações não governamentais não serem governos e não assumirem esta condição, elas não poderiam ser tratadas com as mesmas regras. Esta insuficiência jurídica tem causado sérios problemas para as ONGs, inviabilizando o seu trabalho na sociedade brasileira, somando-se a isto a dificuldade de se conseguir recursos da cooperação internacional, fonte principal de alimentação das ONGs nos últimos 50 anos.

IHU On-Line – Por que há uma necessidade específica de um marco regulatório para as ONGs?

R.A.O– A filantropia e as estâncias de governos se regem por um marco regulatório, e as ONGs não se colocam como filantrópicas e nem como governo, mas sim privadas, sem fins lucrativos, lutando por direitos humanos, além do fato de ser nova essa nomenclatura, assim como seu campo político de ação na sociedade brasileira. Diferentemente da filantropia, que traz na sua essência um forte apelo religioso desde a composição do Estado brasileiro, que já nasce com um lugar específico. Situação diferente acontece com as ONGs, que têm uma vida em torno de 60 anos e que têm ainda pouco acúmulo no uso dos recursos públicos. Pelo fato de o suporte financeiro ter sido dado nos últimos 40 anos pela cooperação internacional, essa necessidade nunca foi tão latente como nos últimos dez anos, quando se iniciou a saída do apoio da cooperação internacional às organizações brasileiras, que lutam por direitos e por democracia, devido ao lugar que o Brasil tem ocupado no cenário mundial.

IHU On-Line – O principal problema das ONGS no Brasil, hoje, é de financiamento?

R.A.O – O universo de ONGs é muito diverso; não dá para fazer um diagnóstico único. Existem várias frentes de trabalho, algumas têm enfrentado dificuldades mais do que outras. Mas o fator financeiro tem significado muito para a existência do trabalho deste universo de organizações. Existem outros fatores que têm implicado no trabalho das ONGs, pois elas vivem hoje um processo indiscriminado de criminalização, fruto de práticas errôneas provocadas por organizações criadas para atender a interesses políticos de determinados segmentos da política brasileira. Além disso, o fato de também se cognominarem ONGs tem causado uma generalização segundo a qual tudo que é ONG é sinônimo de corrupção, o que não é verdade.

Outro problema vivido pelas ONGs no Brasil é o pouco reconhecimento do seu trabalho por parte da sociedade. Isto provoca uma crise de legitimação do trabalho. No nosso caso, ao falar de ONGs, estamos falando das organizações que têm uma identidade com a Abong. Estas organizações nós a identificamos com identidade política, com um leque de ação e abrangência tão diverso como a própria sociedade brasileira e desse universo nós sabemos falar, defender e representar.

 IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades para a captação de recursos?

R.A.O– As ONGs, em sua maioria, nascem numa perspectiva da solidariedade internacional, de lutas pelos direitos humanos no Brasil e pela redemocratização e combate à fome e à miséria. Esta prática solidária tem diminuído nos últimos anos, devido ao lugar que o Brasil tem ocupado no cenário mundial.

A captação de recursos da iniciativa privada ainda é muito incipiente, pois vivemos em um país em que o modelo de economia e de desenvolvimento é muito predador e, em essência, defendemos um modelo de desenvolvimento com respeito ao meio ambiente e aos direitos humanos, concepção esta que colide com os interesses do capital.

A doação individual às ações das ONGs ainda é muito incipiente, pois, devido à cultura religiosa do nosso povo, as doações sempre acontecem com um apelo religioso e nos momentos de catástrofes. E as ONGs nem sempre utilizam desses expedientes, pois estão próximas a uma luta mais de direitos e de mudanças de cultura, de paradigmas e de estrutura da sociedade.

IHU On-Line – Quais são os principais pontos defendidos pela Abong na constituição de um novo marco regulatório das ONGs na relação com o governo?

R.A.O– A Abong tem defendido, nos últimos 20 anos, que o acesso a recursos públicos é um direito e é legítimo, pois as ONGs compõem parte do tecido social e o seu trabalho tem impactado na luta por direitos humanos.

Tem defendido, ainda, maior transparência e lisura no uso dos recursos públicos; tem buscado fazer com que o marco regulatório possa diferenciar as ONGs do campo de direitos das do campo da filantropia, que as ONGs não se confundam com os governos, que possam existir mecanismos de fácil manuseio para informar a população sobre o uso dos recursos, bem como de sua prestação de contas; que o Estado legitime e reconheça o trabalho das ONGs e que elas possam garantir a sua sustentabilidade de forma autônoma sem depender da vontade dos gestores de plantão; que o Estado possa garantir um volume de recursos no Orçamento Geral da União (OGU) para ser conveniado com as organizações da sociedade civil, entre outros.

 IHU On-Line – Em que pé estão as negociações? Há avanços? É possível que o marco regulatório entre em vigor ainda em 2012?

R.A.O – Desde as eleições de 2010, a então candidata Dilma recebeu um documento por parte de um conjunto de organizações da sociedade civil, entre elas a Abong, relatando a necessidade de se regulamentar a relação ONGs/governos. A então candidata assinou o documento comprometendo-se em avançar o diálogo na perspectiva de se construir um projeto de lei para ser encaminhado ao Congresso Nacional para apreciação.

Em novembro de 2011, o governo convocou a sociedade civil para um debate e desse evento saiu uma comissão composta por membros do governo e da sociedade civil para trabalhar no caminho de construção de um projeto de lei.

No momento, a perspectiva é que, no mês de março, a presidente possa ter em mãos uma minuta do projeto de lei para análise e aprofundamentos, para, então, ser enviado ao Congresso Nacional.

IHU On-Line – Quais são as forças políticas refratárias ao marco regulatório?

R.A.O – O Congresso brasileiro é composto por uma pluralidade de segmentos e de interesses, e é evidente que existem segmentos tradicionais que não têm interesse em que se regularize tal relação e que as ONGs possam ter acesso a recursos públicos de forma transparente e tranquila. Para esses segmentos, que em muitos casos usam do expediente da corrupção e dos desvios de recursos para seus interesses políticos, a regularização não vai ser favorável. A nosso ver, as divergências são normais, tratando-se de um Estado democrático em que os espaços de poder são compartilhados com todos os interesses. No entanto, esperamos que prevaleça o bom senso.

IHU On-Line – É possível fazer um balanço do número de ONGs no Brasil e de suas áreas de atuação?

R.A.O– Os dados que se têm são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir do registro de CNPJ. São em torno de 343 mil organizações não governamentais no Brasil, mas é um número ainda incipiente por entendermos que a sigla ONG é um guarda-chuva sob o qual tudo cabe. Não temos informações da classificação, ou seja, onde estão e o que fazem. Mas com certeza é um leque extenso como é extensa a própria composição social da sociedade.

IHU On-Line – Muitos acusam as ONGs de substituírem os movimentos sociais em lugar de fortalecê-los. Como se posiciona nesse debate?

R.A.O– As ONGs não nascem para substituir movimentos sociais; nascem para fortalecê-los. E por fazer parte do tecido social, elas não disputam espaços com movimentos, mas somam-se a eles. Por isto, entendemos que é equivocado dizer que ONG substitui movimento, pois a própria ONG é movimento, a não ser que o chamado movimento tradicional tenha se acomodado nas suas bandeiras e outras forças políticas as tenham assumido ou levantado. Neste caso, cabe a cada situação.